Ao invés de serem estimulados a vencer obstáculos, os alunos aprendem a reclamar direitos legitimados pela culpa coletiva frente à marginalização de sua minoria ou classe.
Marcelo Crivella (PRB-RJ), bispo da Universal, ex-prefeito do Rio de Janeiro, antes já tinha assumido o Ministério da Pesca, em 2012, nunca havia sequer segurado uma vara de bambu em pesqueiros. O mais próximo que passou do assunto foi quando jantou em um rodízio japonês. Mesmo assim, assumiu com pompas a chefia de políticas públicas do assunto. Nelson Rodrigues cantava a bola: “o brasileiro é um feriado”. Na nossa caricata existência, o fato não carrega qualquer novidade. Historicamente, a construção patrimonialista brasileira foi fundamental na depreciação do conceito. Aos amigos do rei as benesses da lei, aos inimigos, seus rigores. O sucesso empresarial condiciona-se, até hoje, aos favores dos ocupantes da máquina pública. Estes, por sua vez, elegem-se impulsionados pelos mesmos agentes privados que beneficiaram ou beneficiarão. Campeões nacionais anabolizados pelo Estado. Assim, formam-se reservas de mercado garantidas por leis, agências reguladoras e tributações, impedindo o ingresso de novos agentes. É evidente a dissociação brasileira do êxito mercadológico com o mérito empresarial de oferecer produtos e serviços competitivos e inovadores. Ao vencedor as batatas.
Desse ciclo, emergem relações sociais bem peculiares. Filhos da instabilidade política e do mercado restrito, incontáveis gerações de brasileiros almejaram e almejam, ironicamente, a estabilidade e a rentabilidade do serviço estatal. Com salários expressivos, benefícios cumulativos e garantias empregatícias – além de mercados privados pouco atrativos, não é difícil entender o surgimento do fetiche por concursos e indicações políticas. Possíveis empreendedores, cientistas e pesquisadores sufocam seus potenciais na improdutiva rotina das repartições públicas. Provavelmente, o Steve Jobs brasileiro se aposentou como telefonista no Tribunal Regional do Trabalho.
Ademais, o imaginário brasileiro carrega suas próprias construções de mérito. Por aqui, atalhos, nem sempre morais ou lícitos, são muito bem apreciados. Mais vale uma indicação que um bom currículo. Difere-se muito do americano, por exemplo, que lida com sua carga de trabalho em uma relação hora/remuneração, ou seja, quanto mais horas trabalhadas maior é o ordenado, independentemente da função exercida. O sonho latino de “fazer América” é umbilicalmente vinculado à essa valorização norte-americana do esforço laboral de qualquer natureza, na qual são perceptíveis as raízes puritanas – protestantes – da nação. Logo, é quase que natural a conclusão de que empreender por aqui constitui um gesto de bravura, de insanidade ou utopismo. Talvez até os três. Demanda estômago. Depois de encargos fiscais, burocracias, riscos, equipamentos, aluguel e salários, sobra a pecha de vilão, explorador. Provavelmente também um processo trabalhista. Contra essas condições, o movimento liberal ganhou voz e recursos. Só não ganhou a simpatia popular. Entretanto, o único feito liberal foi incutir certa aversão coletiva ao assunto, sua banalização, relegando-o às discussões econômicas.
Todavia, as últimas três décadas tornaram inadiável o debate sobre meritocracia na educação. Na esteira do incessante processo progressista – identitário – de problematização do cotidiano, destaca-se a ascensão de teorias pedagógicas politizadas, ditas libertadoras, equalizadoras de desigualdades. A reordenação pós URSS implicou no abandono do discurso econômico e, consequentemente, no fomento à narrativa social/cultural. Assim, o espaço escolar foi ressignificado. A escolarização objetiva daria lugar à formação cívica e ao combate à desigualdade social. A sala de aula, portanto, se tornaria um espaço horizontal de conhecimento, livre de hierarquias opressivas. Métodos tradicionais de avaliação, como provas e trabalhos, foram taxados de retrógrados, pois desconsideravam o timing de aprendizagem e submetiam o discente a pressões desnecessárias. A reprovação por rendimento escolar deu lugar à progressão continuada (aprovação automática). O nivelamento ocorre, mas é por baixo. Tamanha a preocupação pedagógica com a formação cidadã, que a alfabetização e desenvolvimento cognitivo ficaram em segundo plano: cerca de 62% da população brasileira, em levantamento realizado em 2020, é incapaz de interpretar corretamente textos simples ou projeções gráficas. Apenas 7,3% atingem níveis satisfatórios na execução de operações matemáticas. Mesmo com a diminuição da evasão escolar, são números que atestam o estado crítico do ensino básico tupiniquim. Ao adentrar em sala de aula, a ideologia pedagógica aprofundou, paradoxalmente, dinâmicas que pretendia combater. O combate teórico às desigualdades sociais resultou, em sua prática do ensino público, em sua perpetuação e aprofundamento. Não obstante, tais práticas gestaram coletivamente comportamentos como comodismo, vitimismo e ressentimento classista. Ao invés de estímulos voltados à superação de adversidades sociais-meritocráticas-, o discente é condicionado a reclamar direitos (progressão continuada, auxílios financeiros, cotas raciais etc.) legitimados, segundo a lógica da argumentação, pela culpa coletiva frente à marginalização de sua minoria ou classe. Obviamente, colhe-se múltiplos dividendos políticos desse cenário – Marcelo Freixo que o diga!
Esse domínio narrativo censura socialmente vozes dissonantes. O esforço meritocrático, inato ao indivíduo, não ao coletivo, transformou-se em mais um verbete no dicionário progressista de como identificar um fascista. Vale ressaltar, também, que não se trata de um fenômeno restrito ao ensino público. Ao contrário, é no ensino privado que o progressismo encontra plateia cativa/terreno fértil para sua reprodução, e sua continuidade é garantida por um profundo ciclo de alienação acadêmica. Concomitantemente, a decomposição epidêmica de estruturas tradicionais na educação básica consiste em um sintoma de uma mazela muito mais ampla e extremamente nociva. Theodore Dalrymple, em seu artigo “Library of Law and Freedom”, sintetizou que “a ideia de que viver com os próprios meios é uma forma de austeridade e não (salvo em circunstâncias excepcionais) o dever moral elementar de pessoas honradas mostra qu há uma profunda crise moral na civilização ocidental”. O mundo ocidental, cada vez mais suicida, caminha para a barbárie. Definha por seus próprios filhos.Como desgraça pouca é bobagem, o quadro acima é agravado pelo habitual descalabro brasileiro, do qual emana a urgente necessidade de medidas no curto prazo. Da inescapável Lei de Gérson à incapacidade intelectual, somos nossas próprias vítimas. Buscando alguma remediação, inúmeras ações afirmativas foram tentadas, mas que apenas agravaram moléstias ou criaram novos problemas. Por exemplo, a importação do modelo americano de cotas raciais e sua aplicação ipsis litteris, prova inconteste da estupidez endêmica que toma nossos círculos intelectuais. Seu fracasso foi mais que anunciado. Há a completa impossibilidade de equivaler o contexto brasileiro ao americano, onde, de fato, a segregação é historicamente étnica. Nas periferias brasileiras, a acentuada miscigenação não corrobora, de maneira alguma, para a adoção de um modelo étnico, não censitário. O modelo de gestão pública da educação brasileira inverte prioridades: gasta fortunas com o ensino superior, enquanto o básico definha. É o engenheiro que começa a construção pelo telhado. Piada em um país que já é um grande mérito sobreviver.
É urgente a retomada da discussão sobre o modelo educacional do país e sua eficácia. Pressupor igualdade, dizia Nietzsche, nada mais é que “uma forma de degradação, ou seja, de apequenamento do homem, sua mediocrização e rebaixamento de valor”. Retomar o valor do esforço individual, da meritocracia, tornou-se uma questão de sobrevivência. Enquanto isso, é possível assistir de camarote meia dúzia de utopistas arruinarem em poucos anos, sob aplausos, o que se levou milênios para construir. Como costumava dizer o saudoso Millôr, há males que vêm para pior. Cadê meu Rivotril?